Efetividade ao contrário: como o esforço das vítimas contribui para o sucesso dos contos do vigário

A credulidade humana no que se refere aos contos do vigário parece não ter limite, e há bastante tempo é campo de estudo que observo com interesse, por ser quase o oposto do conceito de efetividade: o esforço da vítima contribui para o sucesso do golpista, contra ela.

Os 2.000 comentários dos leitores em um artigo anterior meu sobre o golpe do "trabalho em casa" demonstram claramente isso: algumas pessoas chegam a se exaltar quando são alertadas de que não deveriam depositar dinheiro na conta de quem diz que tem uma oportunidade para elas ganharem dinheiro a partir de casa, mas só darão detalhes se ela pagar uma graninha adiantada.

No ramo dos chamados "contos do vigário", o que se percebe é que raramente a credulidade atua sozinha: eles funcionam tão bem porque conseguem quase sempre (há exceções!) aliá-la à exploração de alguma vulnerabilidade ou fraqueza moral, e em muitas vezes a vítima cai porque se deixa seduzir pela aparente oportunidade de:

  • levar vantagem sobre alguém desinformado,
  • receber uma recompensa desproporcional,
  • ganhar um prêmio a que não fez jus,
  • comprar um objeto mais barato que seu valor de mercado,
  • obter retorno impossível sobre um investimento,
  • pegar um empréstimo a juros impossivelmente baixos,
  • ganhar salário sem trabalhar,
  • comprar algo que tem todas as características de produto de furto ou outro crime,

e similares.

É estelionato

De modo geral, os contos do vigário são incluídos na categoria dos estelionatos, cuja definição inclui os 4 ingredientes básicos: "obter para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento". Alguns deles são associados a outros crimes, ou servem como veículo para que outro crime seja praticado.

A própria origem da expressão "conto do vigário" é controversa, mas o uso original em Portugal se assemelha bastante ao que hoje ocorre nas ruas brasileiras: uma pessoa desconhecida se apresentava em vilas do interior, dizendo ser emissária do vigário da paróquia, e trazendo o que parecia ser objeto de grande valor, que pedia a algum incauto que guardasse até que este "emissário" pudesse um dia retornar para buscar. Movido pelo interesse em ajudar, ou pela possibilidade de que o emissário jamais retornasse, a pessoa aceitava ficar de posse destes objetos valiosos, e dava ao emissário um pequeno valor como garantia.

É até desnecessário dizer o final: o emissário desaparecia com o valor da garantia, e a pessoa que ficou com o objeto logo descobria que ele havia sido roubado de algum vizinho, ou que era falso, e ficava no prejuízo.

Os tipos comuns

Há alguns anos foi bastante divulgada por aqui a prisão de um grupo que aplicava o "golpe da guilhotina", oferecendo a incautos uma máquina (a tal "guilhotina") que aparentemente fazia cópias perfeitas de cédulas de R$ 50. A pessoa testava, se convencia e comprava, achando que rapidamente compensaria o investimento. Os golpistas operaram por bastante tempo, pois quando suas vítimas descobriam que tinham caído no golpe, dificilmente recorriam à polícia, por se verem como cúmplices de um crime.

O mesmo ocorre com o "golpe da carga roubada", em que um comerciante topa comprar para revender, 2 ou 3 vezes, produtos sem nota e a custo extremamente baixo - típicos de cargas roubadas. Depois de algumas vezes, o "fornecedor" se aproxima e "abre o jogo", confessando que trata-se mesmo de carga roubada, atividade na qual ele seria especializado e realiza sem maiores riscos, e convidando o comerciante a lhe antecipar algum dinheiro para financiar um próximo roubo, o que garantiria a ele preços ainda mais baixos, de mercadorias de maior qualidade, que seriam roubadas. O final é previsível: o "ladrão de cargas" some com o dinheiro, e a vítima vê-se constrangida em relatar o acontecido, devido à natureza de sua participação.

Mas nem todos os golpes são assim, e em geral a vítima fica apenas com o prejuízo e com a vergonha (pela credulidade ou ganância), e não com a qualificação de cúmplice.

Se você está lendo este texto, provavelmente acredita que não cairia em nenhum destes golpes. Mas eu conheço bastante gente inteligente e bem informada que já caiu, porque as construções costumam ser bem pensadas, e a operacionalização é magistral.

Veja alguns exemplos comuns:

  • Golpe do bilhete premiado: As décadas passam, e mesmo assim todas as semanas várias pessoas caem nesse golpe, muitas vezes aplicado na saída dos bancos. O golpista finge ser uma pessoa ingênua do interior, perdida na cidade tentando encontrar uma lotérica, e apressada para não perder o último ônibus para sua roça. Ao pedir ajuda à vítima (que foi vista saindo do banco após sacar algum dinheiro), mostra o "bilhete premiado" falso e um recorte de jornal com o resultado. A vítima, bem intencionada a princípio, se oferece para indicar o caminho ou acompanhar o caipira ingênuo à casa lotérica. Após um ou 2 minutos (para dar tempo de a vítima pensar no prêmio), o "caipira" lembra da sua pressa para não perder o último ônibus, e - já que não vai ter tempo de sacá-lo - oferece o bilhete à vítima, em troca do adiantamento de uma pequena parcela do prêmio. A vítima, que tem o dinheiro em mãos ou está próxima do terminal de saques, pensa estar levando vantagem, e se dá mal.
     

  • Golpe da venda do notebook ou aparelho de som: Este também é comum, e a vítima cai ao topar (sem explicitar) comprar um produto com alta probabilidade de ser roubado, ou com a intenção de contrabandeá-lo. O golpista oferece um aparelho de CD de carro, ou um DVD, ou mesmo um notebook, a preço baixíssimo, e sem caixa, manual, fonte de alimentação, etc. - com todas as características de um produto roubado, portanto. A vítima topa, regateia o valor, e paga. O golpista se oferece para colocar o produto em uma caixa, para que a vítima não seja vista pela rua carregando aquele aparelho. Quando ela chega em casa, descobre que a caixa contém uma pedra ou tijolo.
     

  • Golpe do empréstimo ou consórcio: O golpista publica em jornais, ou via cartazes, uma oportunidade de empréstimos a juros baixíssimos, que ele intermediaria (de forma claramente ilegal, mas nunca mencionada) junto a alguma instituição pública ou financeira. A vítima, interessada, entra em contato, informa alguns dados a seu respeito, e dentro de alguns dias recebe um telefonema avisando que o empréstimo já foi liberado, bastando pagar as taxas da instituição, e ele será depositado - "a comissão só será debitada após o depósito". Como são "só as taxas", e o valor é pequeno se comparado ao do empréstimo, a vítima topa fazer o pagamento, via depósito. Durante todo o procedimento, o contato foi só por telefone. Depois do depósito ser realizado, já era: na hora de investigar, vai ser descoberto que os telefones usados eram roubados, e a conta do depósito foi aberta com documentos falsos. A variação baseada em consórcios tende a ser pior, porque a vítima acaba fazendo vários pagamentos parcelados, perfazendo uma quantia maior. Às vezes chega a haver uma "sede", e as diversas vítimas só descobrem o golpe quando, um certo dia, encontram a sede fechada e abandonada. Variação: Cheque roubado ou sem fundos: eventualmente é feito um depósito "do empréstimo", com cheque sem fundos, na conta da vítima, que assim chega a consultar o extrato e verificar que o depósito foi mesmo efetuado, embora esteja bloqueado por 24 ou 48 horas, como é usual. E assim ela acredita ainda mais na solidez da negociação...
     

  • Golpe do seguro: O golpista oferece - por telefone, anúncio ou visita - um seguro (de casa, automóvel, vida, etc.) em condições bem mais interessantes do que as usuais. A vítima se interessa e aceita, preenchendo todos os formulários oficiais, e pagando a primeira parcela - os boletos das demais chegarão via correio, juntamente com a apólice. Naturalmente, o falso securitário some com o dinheiro da primeira parcela, e o seguro jamais é feito (e às vezes a vítima descobre isso só quando bate o carro e tenta usar o seguro recém-contratado...). Seguro se faz com profissional habilitado, em instituição conhecida, e se for pago a algum agente, é com cheque cruzado e nominal à seguradora!
     

  • Golpe do consórcio premiado de automóvel: O golpista anuncia, no interior do estado, a venda de um consórcio já contemplado, na capital. A vítima telefona e se interessa, ao saber que haverá "desconto no pagamento da entrada", e que as parcelas restantes do pagamento são poucas, ou são bem baixas. Recebe por fax uma nota fiscal (falsificada) do veículo, e as instruções para ir retirá-lo na capital. Para "segurar o negócio", basta que ela deposite desde já uma parte substancial da entrada. E depois que ela depositar... jamais ouvirá falar do veículo, do vendedor ou do seu dinheiro novamente. Usualmente o telefone é roubado e a conta bancária é aberta com documentos falsos.
     

  • Golpe do cheque achado: Este eu realmente não entendo como pode funcionar - mas é comum. Os golpistas agem em dupla. Após perceber que alguém saiu do banco tendo sacado dinheiro, um deles vai à frente desta vítima, e o outro segue logo atrás. O da frente deixa cair um envelope contendo um cheque de alto valor, e a vítima, ao perceber, pega o envelope e entrega, de boa fé, ao golpista que deixou cair. O outro golpista vem logo atrás, e diz que viu o mesmo acontecimento. O golpista da frente abre o envelope, mostra o cheque e diz que está tão grato que dará uma polpuda recompensa a ambos, bastando que o acompanhem ao seu escritório. Um dos dois convence a vítima a entregar sua bolsa, "como garantia" (de que?) ou para sua própria proteção durante o trajeto. O segundo golpista desaparece (com o dinheiro que já retirou da bolsa da vítima) durante o trajeto, e a vítima, caso chegue até o escritório, descobrirá que a recompensa é bem menor que a quantia que ele havia sacado, e concluirá (erradamente) que foi roubada apenas pelo segundo participante, que desapareceu no caminho. Quando descobrir que se trata de um golpe comum, será tarde para localizar o outro participante também.
     

  • Golpe da bênção - pai-de-santo, pastor ou frade: O golpista, informado sobre algum problema pessoal ou familiar da vítima, forja um encontro casual na rua, e finge ter poderes sobrenaturais, falando à vítimas detalhes sobre o problema, e sobre possibilidades de "solução espiritual". Seguem até local apropriado para rituais, e lá a vítima é iludida com mais informações (pesquisadas previamente) sobre o problema, ou sobre a sua vida pessoal. Marcam novo encontro para daqui a 3 dias, para trazer dinheiro ou objetos de valor para serem benzidos ou algo assim. A "bênção" envolve colocar os objetos em um pacote que deve ser mantido fechado (em poder da vítima) por 7 dias e 7 noites. Quando a vítima chegar a abrir o pacote, descobrirá que lá dentro só há pedras ou papel de jornal, e que o verdadeiro pacote está em poder do golpista, que já estará bem longe.
     

  • Golpe do falso funcionário de banco: o falso funcionário, com uniforme e até crachá, circula pela agência, organizando a fila e dando informações. Quando encontra uma vítima, oferece-se para agilizar um depósito, preechendo a ficha e levando-a, juntamente com o dinheiro, diretamente ao setor interno da agência. Ou ao menos é nisso que a vítima acredita. Quando ela desconfia da demora, o falso funcionário já estará muito longe. Em uma variação, ele aborda pessoas que já fizeram um saque, e informa que houve problema com as notas - precisam ser recontadas, ou há suspeita de que há 2 ou 3 notas falsas incluídas no bolo. Ele se oferece para rapidamente providenciar a contagem, ou a troca. E jamais retorna...
     

  • Golpe da falsa entrevista de emprego: a vítima responde a um anúncio de emprego, é chamada para uma entrevista, e aprovada com louvor: seu perfil é excelente, a disponibilidade tem que ser imediata, e lhe são apontadas diversas qualidades que ninguém antes havia percebido nela. Novas instruções serão dadas por telefone. No dia seguinte, vem o telefonema: para possibilitar a contratação, será necessário traçar um perfil psicológico especial, na clínica XYZ. "É simples e rápido, só uma formalidade", garantem. Chegando na clínica, a pessoa descobre que terá que desembolsar um valor considerável para fazer o tal perfil. Poucos topam. Os que topam, depois serão informados que a vaga já foi preenchida, mas que ela pode ficar tranquila, pois o seu perfil é excelente e já está arquivado no banco de talentos para a próxima vaga - que nunca surgirá, pois nem a primeira delas existia - a intenção é apenas coletar os pagamentos pelo tal perfil.
     

  • Golpe da oportunidade de trabalho em casa: Neste golpe, é anunciada uma oportunidade de trabalho em casa (usualmente descrita como sendo "de mala direta", "de envelopamento" ou "de digitação"), mas o interessado tem que desembolsar uma pequena quantia para saber os detalhes. Quando ele paga, descobre que na verdade terá que pagar mais uma quantia, pouco maior, para receber a proposta detalhada. Se pagar, receberá a proposta, que explica que para ganhar o tal dinheiro em casa, deverá anunciar (via mala direta, envelopamento de ofertas ou digitação de cartazes, tudo por sua própria conta e risco) esta mesma proposta, coletando este primeiro pequeno pagamento inicial dos interessados curiosos (como ele também já foi um dia), e aí redirecionando-os para que façam o segundo pagamento ao agenciador, como ele também já fez. Leia também: "Trabalho em casa: como encontrar um emprego e escapar das armadilhas".
     

Alguns órgãos de segurança, como este batalhão de Polícia Militar, mantêm listas de golpes frequentes e instruções para evitá-los. De modo geral, a dica é desconfiar da ajuda de estranhos para tudo que envolver valores, e ficar atento a ofertas boas demais - quando a esmola é muita, o santo deveria sempre desconfiar!

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